Ao longo da história, o cristianismo foi de grande influência no modo como as sociedades ocidentais conceberam a relação dos seres humanos com os animais não humanos e o valor das vidas destes. A sentença bíblica “Deus nos deu o domínio” é ainda hoje utilizada por alguns como objeção àqueles que defendem o veganismo e os direitos animais. Um modo de responder a essa objeção, é alegar que doutrinas religiosas não podem determinar os direitos dos indivíduos em sociedades laicas. Mas será que também é possível dar uma resposta cristã a essa objeção? Se for, ela certamente terá mais chances de convencer pessoas religiosas. A fim de dar uma resposta afirmativa para a questão, o filósofo Tom Regan (1938 - 2017) forneceu uma reinterpretação do Gênesis, compartilhada abaixo.
POR TOM REGAN
"Bem, pelo menos Deus nos deu o domínio!"
Pessoas com inclinações religiosas, especialmente os cristãos que levam a Bíblia a sério, normalmente concordam que os direitos não são a moeda moral de sua ética baseada na fé. Você simplesmente não encontra direitos morais na Bíblia. O que você encontra, sem ambigüidade, é que Deus nos deu o domínio sobre os outros animais, dito celebremente com as seguintes palavras:
E Deus disse: "Façamos o homem à nossa imagem e à nossa
semelhança: e vamos deixá-lo ter domínio sobre os peixes do
mar e sobre as aves do céu, e sobre o gado e sobre toda a Terra,
e sobre todas as coisas rastejantes que nela vivem." Então Deus
criou o homem à sua imagem, à imagem de Deus Ele o criou;
macho e fêmea, Ele os criou. E Deus os abençoou, e Deus lhes
disse: "Sejam férteis e se multipliquem, e povoem a terra e a
subjuguem: e tenham domínio sobre os peixes do mar e sobre as
aves do céu, e sobre todas as coisas vivas que se movimentam
na Terra". (Gênesis 1:26-28, versão do rei James).
O que poderia estar mais claro do que a idéia de que os outros animais foram criados para o nosso uso? O que poderia estar mais claro do que a idéia de que não fazemos nada de errado ao limitar sua liberdade, ferir seus corpos ou tirar suas vidas para atender às nossas necessidades e saciar nossos desejos?
Não é assim que eu leio a Bíblia. Ser contemplado por Deus com o domínio sobre tudo não significa receber uma carta branca para atender às nossas necessidades ou saciar nossos desejos. Pelo contrário, significa ser íncumbido da imensa responsabilidade de ser o representante do criador na criação; em outras palavras, nós fomos chamados por Deus para sermos tão cheios de amor e de zelo por aquilo que Deus criou quanto o próprio Deus foi cheio de amor e zelo ao criar tudo. De fato, conforme meu modo de entender a idéia, é isso o que significa ser "criado à imagem de Deus".
Eu mesmo não sei como alguém pode ler o relato inicial da criação no Gênesis (ele pode ser levado a sério sem ser tomado no sentido literal) e acabar entendendo de forma diferente os planos e a esperança de Deus para a criação. Deus, você deve lembrar, criou os outros animais no mesmo dia (o sexto) que Adão e Eva. Nessa representação da ordem da criação, eu vejo um reconhecimento antecipado do parentesco vital que os humanos têm com outros animais. Além disso, nessa saga inicial eu encontro uma mensagem mais profunda. Deus não criou os animais para o nosso uso - não para nosso entretenimento, nossa curiosidade científica, nosso esporte, nem mesmo para nossa alimentação. Ao contrário, os animais não-humanos atualmente explorados dessas maneiras foram criados para ser justamente o que eles são: expressões independentemente bondosas do amor divino que, de uma forma que provavelmente continuará sendo misteriosa para nós, se mostrou na atividade criadora de Deus.
"Nem mesmo para nossa alimentação?", posso ouvir o resmungão cético perguntar. "Será que isso é um erro de impressão?" Minha resposta é: "Não, não é um erro de impressão. É o que a Bíblia ensina". A "carne" que recebemos de Deus para nosso alimento não é a carne dos animais. Eis o que ela é: "E Deus disse Vejam, eu lhes dei todas as ervas com sementes sobre a terra, e todas as árvores, nas quais estão os frutos com sementes; para vocês, isso será a carne"' (Gênesis 1:29). A mensagem não podia ser mais clara. Não há caçadores no Éden, mas só coletores. No mais perfeito estado da criação, os seres humanos são veganos; não comemos carne de animais nem qualquer produto de origem animal, como leite ou ovos. Portanto, se perguntarmos o que Deus esperava de nós "no início", em se tratando de comida a resposta não está aberta a discussões: Ele não esperava Big Macs nem omeletes de queijo.
Para os cristãos, a pergunta feita a cada dia é simples: "Será que estou tentando dar uma virada na minha vida para começar a minha jornada de volta ao Éden - de volta a uma relação mais amorosa com essa dádiva da criação? Ou eu continuo a viver de maneira a aumentar a minha distância daquilo que Deus esperava?" Esta pergunta é respondida de várias maneiras, não só uma. Sobre isso, não há o que argumentar. Tampouco devemos discutir se as escolhas que os cristãos fazem quanto à comida no seu prato é uma das maneiras de responder a essa pergunta. Os animais do Jardim do Éden viviam no paraíso precisamente porque ninguém violava seus direitos - e é isso o que, na minha opinião, os cristãos deveriam querer para os animais, hoje.
"Defensor cristão dos direitos animais" não é um oximoro. É verdade que é o amor, e não os direitos, o que está no cerne da ética cristã. Ainda assim, "Defensor cristão dos direitos animais" é urna forma adequada de expressar um ativismo baseado na fé, que trabalha pelos mesmos objetivos que os defensores dos direitos animais: jaulas vazias, não jaulas mais espaçosas. O mesmo vale para o defensor judeu dos direitos animais, defensor muçulmano dos direitos animais, defensor hindu dos direitos animais, defensor budista dos direitos animais, e assim por diante. Se fizermos um retrato familiar dos defensores dos direitos animais, ele incluirá pessoas de todos os credos. Elas têm tudo a ver, ali. O fato de muita gente de fora da comunidade dos defensores dos direitos animais achar difícil acreditar que crentes possam ser defensores dos direitos animais só vem a mostrar quão bem-sucedidas são as grandes indústrias de exploração animal em criar e manter uma imagem errada de nós.
SAIBA MAIS
O texto acima foi retirado do livro Jaulas Vazias, do filósofo Tom Regan (1938 - 2017). O livro completo pode ser acessado em nossa biblioteca virtual.
Para o/a leitor(a) interessado(a) em saber mais sobre a teoria filosófica do autor, veja nosso texto Direitos para animais não humanos? A argumentação do filósofo Tom Regan.
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