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sábado, 14 de setembro de 2019

Igualdade para animais não-humanos? A argumentação do filósofo Peter Singer

O polêmico filósofo australiano Peter Singer é, sem dúvidas, um dos mais notórios e importantes no movimento contra a exploração de animais não-humanos. Sua principal obra sobre o tema, Libertação animal, publicada originalmente em 1975, foi de grande influência para as discussões filosóficas e políticas que se seguiram e que tornaram os direitos animais um dos temas mais debatidos da Ética Aplicada (subárea da Filosofia Moral que discute teorias morais aplicadas às questões práticas). Seu trabalho segue influenciando seguidores, críticos e opositores. A seguir, veremos resumidamente a argumentação principal de Peter Singer em prol dos animais não-humanos.


Ao longo da história humana, muitas foram as formas de opressão e negação de direitos contra grupos de seres humanos. Após séculos de movimentos de combate às discriminações contra grupos de seres humanos, hoje é comumente aceito, ao menos em princípio, que todos os seres humanos são iguais. Isso não quer dizer que formas de discriminação como racismo e sexismo sejam coisas do passado (ao contrário, elas ainda existem de modo muito significativo); mas que agora, mais do em outros momentos da história humana, estamos de acordo com o princípio da igualdade humana - ainda que haja muito por fazer para a efetividade prática desse princípio. 
Antes de discutirmos a possibilidade de igualdade para animais não-humanos, precisamos dar um passo atrás e entender o que estamos falando quando falamos nessa igualdade humana. Quando afirmamos que todos os seres humanos são iguais, independente de sua raça, sexo, nacionalidade, orientação sexual etc., o que exatamente estamos querendo dizer? Por que exatamente discriminações como o racismo e o sexismo são erradas? Em outras palavras, no que se baseia a igualdade humana?
Dar uma resposta adequada a essa questão não é tão simples quanto pode parecer à primeira vista. Indiscutivelmente, os seres humanos diferem entre si de muitas formas: somos diferentes em nossos atributos físicos, em nossas habilidades intelectuais e até mesmo em nossas capacidades emocionais e afetivas. Ainda assim, uma possível resposta para nossa questão seria afirmar que existe alguma característica especial compartilhada por todos os seres humanos e que seria o fundamento de nossa igualdade. Que característica, porém, poderia ser essa? Um dos mais influentes filósofos morais do século XX, John Rawls, sugeriu que a personalidade moral era essa característica. Por “personalidade moral”, Rawls se refere a possuir um senso de justiça, isto é, ter a capacidade de julgar como justas ou injustas certas ações ou princípios.
Diversas objeções podem ser levantadas contra a teoria de Rawls, mas a mais importante delas é a de que não é verdade que todos os seres humanos possuem um senso de justiça: bebês recém nascidos, crianças até certa idade e pessoas com deficiências mentais severas certamente não o possuem. Poderíamos então dizer que todos os seres humanos são iguais com a exceção dos recém nascidos e dos deficientes mentais? Certamente não é isso que queremos dizer quando afirmamos a igualdade humana. Assim, a resposta de Rawls é insatisfatória.


O filósofo Peter Singer oferece outro tipo de resposta para nossa questão: nós devemos entender a igualdade como uma ideia moral e não como a descrição de um estado de coisas. Isso significa que a busca por uma característica especificamente humana que seja a fonte de nossa igualdade é um erro; em vez disso, devemos compreender a igualdade como um princípio ético que prescreve como devemos tratar uns aos outros. Quando dizemos que todos os seres humanos são iguais independente da raça ou sexo, o que estamos querendo dizer é que devemos tratar os interesses de cada ser humano igual e imparcialmente, sem levar em consideração as características pessoais do indivíduo em questão. Assim, para Singer, a igualdade consiste no princípio da igual consideração de interesses.
Uma vez aceita essa concepção de igualdade, fica claro o que há de errado com o racismo e o sexismo - assim como com outras formas de discriminações arbitrárias. O racista, por exemplo, atribui mais peso aos interesses do seu próprio grupo racial do que aos interesses dos demais indivíduos, violando, portanto, o princípio da igual consideração de interesses. Do mesmo modo o sexista que nega direitos iguais às mulheres ou o xenófobo que acha que seus interesses devem se sobrepor aos interesses dos estrangeiros.
Mas se esta é a base da igualdade humana, pode ela ser limitada aos seres humanos? O que dizer quanto aos interesses dos animais não-humanos? Se estamos moralmente injustificados ao negar igual consideração de interesses a um indivíduo devido a sua raça, gênero, nacionalidade etc., também estamos moralmente injustificados ao fazê-lo com base na espécie. Dar mais peso aos interesses de seres humanos em detrimento dos interesses de animais não-humanos é igualmente uma forma de discriminação arbitrária, a qual hoje chamamos de especismo.
Se um ser possui interesses, devemos levar em conta esses interesses imparcialmente. Por isso, o princípio da igualdade requer que ampliemos a nossa esfera de consideração moral a todos os seres que possuem interesses, isto é, a todos os seres sencientes (pois todos e somente os seres sencientes possuem interesses). E o que isso significa na prática? Significa que todos os seres sencientes devem possuir exatamente os mesmos direitos? Por certo, não. Igual consideração não significa igual tratamento, pois as diferenças factuais entre os indivíduos podem resultar em necessidades e interesses distintos. Isso ocorre mesmo entre seres humanos: por exemplo, o direito ao aborto (para aqueles que o defendem) é um direito específico das mulheres, e a igualdade não requer que se as mulheres possuam este direito, todos os seres humanos passem a ter este mesmo direito (não faria sentido falar em direito ao aborto para homens). Diferenças entre indivíduos suscitam direitos diferentes.
Do mesmo modo, quando falamos em direitos animais não significa que devemos dar a eles exatamente os mesmos direitos que nós temos, mas sim certos direitos que derivam de suas necessidades e interesses. Na prática, a negação desses direitos se expressa sobretudo nas diferentes indústrias de exploração animal. Nós deixamos, por exemplo, que o nosso interesse trivial em saborear um pedaço de carne supere os interesses mais importantes dos animais não-humanos, como o interesse em não sofrer (entre os exemplos de sofrimento envolvidos nesta indústria estão o encarceramento, a marcação a ferro quente, a separação de mães e filhotes, o transporte em condições inadequadas etc); na indústria de cosméticos, nós aplicamos testes dolorosos em animais não-humanos muitas vezes simplesmente para ter uma nova cor de batom no mercado; na indústria do entretenimento, causamos intenso sofrimento a eles para o divertimento de uma plateia. Em todos esses casos e muitos outros, nós não damos a devida consideração moral aos animais não-humanos e o fazemos por uma discriminação arbitrária, o especismo.
Podemos agora, de modo simplificado e resumido, apresentar formalmente o principal da argumentação de Singer em prol da igualdade para os animais não-humanos:


(1) A igualdade é um princípio ético que prescreve como devemos tratar uns aos outros.
(2) O princípio da igual consideração de interesses é esse princípio.
(3) O princípio da igual consideração de interesses requer que se um ser possui interesses, levemos em conta esses interesses imparcialmente.
(4) Animais não-humanos possuem interesses (como o de não sofrer).
(5) As indústrias de exploração animal desrespeitam os interesses mais básicos e importantes dos animais não-humanos em nome de interesses triviais humanos.
Conclusão → Tais práticas de exploração animal são moralmente injustificadas e não devemos financiá-las nem praticá-las.
Nós precisamos reconhecer que a ideia de igualdade não pode ficar restrita a nossa própria espécie. Se levamos a sério o combate às discriminações, os demais animais precisam fazer parte de nossas considerações morais. Todos os animais são iguais no sentido de que os interesses de todos devem ser levados em conta. Uma vez aceito isso, o modo como enxergamos diversas das práticas socialmente aceitas muda radicalmente - a exploração animal precisa acabar.


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SAIBA MAIS

O texto acima foi escrito com base na argumentação desenvolvida pelo filósofo no primeiro capítulo de sua obra Libertação animal. Uma argumentação semelhante é desenvolvida pelo autor nos capítulos 2 e 3 de sua obra Ética prática. Ao leitor interessado, ambas as obras estão disponíveis em nossa Biblioteca virtual (clique aqui para acessar). Nela, também está disponível o ensaio de Singer intitulado “Todos os animais são iguais” que encontra-se em Os animais têm direitos?, obra organizada por Pedro Galvão.
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