Um blog sobre as bases filosóficas do veganismo

sábado, 14 de setembro de 2019

Direitos para animais não-humanos? A argumentação do filósofo Tom Regan

O filósofo Tom Regan, falecido recentemente em 2017, é indiscutivelmente um dos mais importantes e influentes autores do movimento moderno de defesa filosófica dos direitos animais. Suas diversas obras e sua teoria dos direitos dos animais não-humanos influenciou seguidores, críticos e opositores. Regan também foi, ao lado de outros filósofos e filósofas, um dos principais responsáveis por tornar a discussão dos direitos animais um dos tópicos mais discutidos da filosofia prática. A seguir, veremos resumidamente como o filósofo sustenta os direitos animais em uma de suas obras.



De acordo com Tom Regan, para estarmos aptos a discutir os direitos animais (se eles existem ou não, e o que são, caso existam), precisamos antes compreender o que são os direitos humanos. Assim, é preciso encarar pelo menos duas questões: primeiro, o que são os direitos humanos? Segundo, por que é que nós possuímos esses direitos? É necessário responder uma de cada vez.
A expressão “direitos humanos” é bastante corrente e comum em nossos dias. Isso não significa, porém, que haja consenso na discussão sobre o que são esses direitos humanos. Além da discussão acerca de quais direitos exatamente fazem parte desses “direitos humanos”, há também a discussão ainda mais difícil acerca da natureza desses direitos. Por exemplo, os direitos humanos são direitos morais absolutos que não podem ser infringidos em nenhuma circunstância? Ou são direitos políticos inventados que podem ser deixados de lado em determinados casos - talvez quando o bem maior está em jogo? Regan é um dos proponentes do primeiro tipo de resposta. Para ele, os direitos humanos são direitos morais que podemos sempre reivindicar e que ninguém pode nos tirar com justiça. Qualquer ato contra os direitos morais humanos de alguém é uma violação injusta, seja qual for a justificativa para essa violação.
Essa teoria parece estar, em boa medida, de acordo com nosso senso comum. Muitos de nós acreditam que temos certos direitos como os direitos à vida, à liberdade e à integridade física que são invioláveis. Isso não quer dizer que não corremos riscos de que alguém viole esses nossos direitos, mas sim que se isso ocorrer, será uma injustiça e estaremos legitimados a fazer o que estiver em nosso alcance para nos defender. São exatamente esses três direitos citados (vida, liberdade e integridade física) que Regan sustenta serem os direitos morais que temos. Não importa as circunstâncias: ninguém pode legitimamente atentar contra a vida, a liberdade ou a integridade física de um ser humano inocente. Isso são os direitos humanos.
A próxima questão que temos que responder, então, é por que nós temos esses direitos. Em outras palavras, isso significa perguntar o que faz com que nós, seres humanos, tenhamos esses direitos, enquanto outros seres ou objetos existentes - por exemplo, objetos como paus e pedras - não têm? Qual característica (ou conjunto de características) relevante todos os seres humanos possuem que paus e pedras não possuem e que conferem aos seres humanos os direitos morais? De novo, esta não é uma questão tão simples quanto parece. Ao longo da história, muitas respostas diferentes surgiram e ainda hoje respostas distintas são sustentadas por grupos distintos. Em sua obra, Regan investiga pelo menos sete dessas respostas. A fim de não nos estendermos tanto, discutiremos brevemente apenas duas delas.
1. Os seres humanos têm direitos porque são humanos
Alguém poderia afirmar (e de fato existem pessoas que afirmam) que nós temos esses direitos morais simplesmente porque nós somos humanos. Poderia essa resposta ser adequada? Embora seja verdadeira a proposição de que nós somos humanos, ela é irrelevante para entender porque nós temos os direitos que temos, pois não possui importância moral. Para compreender isso, suponha que eu diga “pedras têm direitos”. Você, perplexo, pergunta: “por que diabo você afirma isso?”. Eu respondo que pedras possuem direitos porque pedras são pedras. Qual o problema dessa minha resposta? O problema é que ela não fornece nenhuma razão para sustentar minha afirmação de que pedras possuem direitos, ela apenas afirma uma verdade lógica (que uma coisa é igual a si mesma). Do mesmo modo, responder a pergunta do porquê os seres humanos possuem direitos morais dizendo que eles possuem porque são humanos é inadequado, pois não fornece razões e nada explica (uma resposta semelhante mas um pouco diferente consiste em afirmar que pertencer a espécie Homo sapiens é por si mesmo moralmente relevante. Mas isso seria o que chamamos de especismo e teremos em breve um texto próprio para discutir os problemas dessa concepção).
2. Os seres humanos têm direitos porque são pessoas
A verdade dessa proposição depende do que entendemos por “pessoa”. É comum utilizarmos esse termo como sinônimo de “ser humano”, mas em discussões filosóficas também é comum utilizar “pessoa” para se referir a um indivíduo que possua determinadas características, em especial a de ser moralmente responsável. Nesse sentido, o fato de um indivíduo ser uma pessoa é de fato moralmente relevante. Pois, se indivíduos moralmente responsáveis não possuíssem direitos morais, como poderíamos sustentar que outros indivíduos possuem direitos? Se alguns indivíduos possuem direitos morais, aqueles que são moralmente responsáveis (portanto, que são, nesse sentido, “pessoas”) certamente estão inclusos. O problema, porém, é que muitos seres humanos não são pessoas nesse sentido. Bebês recém nascidos e crianças até certa idade, por exemplo, não são moralmente responsáveis; seres humanos adultos com determinados problemas cognitivos também não. Assim, se acreditamos que todos os seres humanos possuem direitos morais, não podemos aceitar que é porque são pessoas. 


Se essas são respostas insatisfatórias, o que pode explicar os direitos morais que temos? Para o filósofo que estamos considerando, trata-se de um conjunto de características cujos indivíduos que as possuem podemos chamar de sujeitos-de-uma-vida. Por essa expressão, Regan se refere a todos os indivíduos que estão no mundo e possuem a consciência desse mundo, a percepção do que acontece com eles e, além disso, se importam com o que acontecem com eles (seja aos seus corpos, à sua liberdade ou à sua vida). Essas são características moralmente relevantes porque os indivíduos que as possuem se importam com a qualidade e duração de suas vidas. E nós, seres humanos, somos todos sujeitos-de-uma-vida. 
Podemos agora retomar e responder nossa pergunta anterior: por que nós, seres humanos, possuímos direitos morais enquanto paus e pedras não possuem? Porque nós possuímos um conjunto de características que fazem com que nos importamos com o que acontece conosco, com nossos corpos e nossas vidas, enquanto paus e pedras não possuem. Em outras palavras, temos esses direitos porque somos sujeitos-de-uma-vida. É essa noção que explica porque todos os seres humanos são moralmente iguais (incluindo aqueles que não são moralmente responsáveis). Em outras palavras, é o que explica os direitos humanos.
Agora que finalmente entendemos os direitos humanos podemos finalmente discutir a possibilidade dos direitos dos animais não-humanos. Como determinar se animais não-humanos possuem direitos morais? Ora, uma vez que descobrimos que seres humanos possuem esses direitos porque são sujeitos-de-uma-vida, o que temos que discutir é se animais não-humanos também o são, isto é, se são capazes de estarem conscientes do mundo e se importar com o que lhes acontece.
Já foi sustentado, séculos atrás, que animais não-humanos eram como máquinas, incapazes de qualquer consciência. Hoje, tal postura é cientificamente indefensável, além de totalmente contraintuitiva. Sabemos que outros animais compartilham conosco certos comportamentos comuns - tentando fugir, por exemplo, de situações de perigo. Outros animais também dividem conosco uma origem evolucionária comum que faz com que tenhamos muitas semelhanças anatômicas; dentre elas, o sistema nervoso. Felizmente, não precisamos nos estender neste ponto - quem ainda seria capaz de negar que animais como vacas, bois, ovelhas, macacos, pássaros e cachorros são capazes de se importar com o que lhes acontece? Alguém diria, por exemplo, que esses animais não se importariam caso incendiássemos seus corpos?
Com isso, podemos agora retomar o movimento argumentativo desenvolvido por Regan e resumir as principais teses e conclusões:

(1) Todos os seres humanos possuem certos direitos morais, isto é, direito à vida, liberdade e integridade física.
(2) O que faz com que tenhamos esses direitos é o fato de sermos sujeitos-de-uma-vida.
(3) Todos os sujeitos-de-uma-vida tem os mesmos direitos.
(4) Muitos animais não-humanos também são sujeitos-de-uma-vida.
Conclusão → Todos os animais não-humanos que são sujeitos-de-uma-vida possuem os mesmos direitos morais, ou seja, o direito à vida, à liberdade e à integridade física.


Uma vez que reconheçamos a existência desses direitos para os animais não-humanos, fica claro como as diversas indústrias de exploração animal os violam de maneira grave e sistemática. Para a produção de alimentos de origem animal, por exemplo, os direitos de dezenas de bilhões de animais são violados anualmente. O mesmo ocorre nas práticas de experimentação animal e na indústria do entretenimento (rodeios, touradas, zoológicos etc.). Essas e todas as demais formas de exploração animal são, por isso, moralmente injustificadas. E é por isso que, como diz o filósofo, as jaulas precisam se tornarem vazias e não apenas maiores. Para que isso ocorra, o primeiro passo é que cada um de nós passe a levar um estilo de vida que não financie essas indústrias de exploração animal. Em outras palavras, que cada um de nós considere o veganismo.

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SAIBA MAIS
O texto acima foi escrito com base na argumentação desenvolvida pelo filósofo Tom Regan nos capítulos 3 e 4 de sua obra Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Ao leitor interessado, a obra completa está disponível em nossa Biblioteca virtual (clique aqui para acessar). Uma discussão mais acadêmica e com outra estrutura argumentativa é realizada pelo filósofo em sua obra principal The case for animal rights.
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