Um blog sobre as bases filosóficas do veganismo

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

A filosofia e o veganismo: uma resposta a Luiz Felipe Pondé


O filósofo brasileiro Luiz Felipe Pondé, figura razoavelmente conhecida na internet e que atualmente é professor na PUC/SP e FAAP, já comentou sobre o veganismo em mais de uma ocasião. Com algumas delas sendo em seu próprio canal no YouTube, Pondé invariavelmente dá a entender que o veganismo consistiria em um movimento cuja base filosófica seria fraca e que não passaria de “simples moda”. O propósito principal deste blog é provar justamente o contrário: que o movimento vegano pelos direitos animais está baseado na mais sóbria das filosofias e tem a seu favor os mais sólidos argumentos. Assim, cabe apresentar respostas aos comentários feitos por Pondé. O que há de errado com eles? Por que Pondé está errado? O presente texto se atenta para essas questões. Visando responder de forma clara e direta, reproduzimos literalmente trechos de seus vídeos e respondemos um de cada vez.

PONDÉ: “Eu acho muito iludido, do ponto de vista filosófico da coisa, é a ideia de que você pode simplesmente se retirar da cadeia de violência da natureza. A própria natureza é uma cadeia de violência. Ela é a primeira a ser violenta. Assim como ela cria, ela destrói.”*
Neste comentário, Pondé parte de uma constatação factual verdadeira: a natureza é por si só violenta. Mas o que poderia resultar dessa constatação? Pondé alega que aqueles que aderem ao veganismo querem simplesmente se isolarem dessa violência e que, não sendo isso possível, o veganismo seria uma filosofia de vida iludida. Há pelo menos dois problemas aqui. O primeiro é que Pondé recorre à falácia do espantalho (que consiste em distorcer o argumento ou tese de alguém para que assim se possa atacá-lo mais facilmente). Pondé cita (de modo bastante problemático, como veremos a seguir) Peter Singer como exemplo de filósofo da causa animal. Se tivesse lido o filósofo e a obra citada em seu vídeo com mais atenção (Libertação animal), Pondé teria lido na p. 338: “O objetivo da alteração de nossos hábitos de consumo não é nos manter intocados pelo mal, mas reduzir o apoio econômico à exploração dos animais e convencer outros a fazer o mesmo”. Ou, se Pondé tivesse estudado com respeito o tema antes de formular suas críticas, teria se deparado com Tom Regan, outro filósofo importantíssimo da causa animal, e então teria lido esse defensor do veganismo afirmar: “os defensores dos direitos animais não têm razão para se considerar perfeitos exemplos de virtude, como se o mundo fosse dividido entre Puros (esses seríamos nós) e Impuros (esses seriam o resto da humanidade). [...] A certeza exagerada da própria virtude não é uma condição prévia, nem uma conseqüência necessária, da defesa dos direitos animais” (Jaulas vazias, p. 234).


O segundo problema de seu comentário, é que para que o fato de que a natureza é violenta funcione como uma crítica ao veganismo, ela tem de estar baseada em um dos dois raciocínios seguintes. Primeiro, pode ser a sugestão de que uma vez que a natureza é em si mesma violenta, seria certo para nós reproduzir essa violência. Mas isso seria recorrer à falácia naturalista (que consiste em alegar que porque algo é natural é moralmente bom) e o próprio Pondé admite não concordar com ela em uma entrevista em outro vídeo[1]. Ora, é claro que a natureza é violenta, mas isso nada diz sobre o modo como nós, seres morais, devemos nos comportar. A segunda opção é que a crítica de Pondé tenha por base a suposição de que, se não é possível nos abster completamente de qualquer violência, então não precisamos fazer nada para diminuir ou acabar com a violência que nós próprios geramos. Mas... alguém realmente pensa assim? Se não podemos acabar com toda a violência, podemos simplesmente reproduzir qualquer violência? É claro que não. Essa é justamente a razão (idealmente) pela qual criamos instituições que visam coibir a violência.

PONDÉ: “Tem aí um filósofo chamado Peter Singer, que é assim uma espécie de guru, apesar de muitos veganos nem saberem disso. Publicou em 1975 um livro chamado Animal Liberation, onde ele cunha um conceito que é “especismo” em que ele diz que a gente se alimentar de animais e prender animais é uma forma de racismo transespécie, daí especismo, no sentido em que acharíamos que os animais são inferiores. O fato é que o que eles tentam é aproximar o veganismo de uma forma de canibalismo e que portanto você comer proteína animal, comer animais e fazer outros usos de animais seria uma forma de crime. É claro que você torturar animais e sofrimento é uma coisa dolorosa. O que eu critico no veganismo é uma certa percepção sensorial e estética infantil da realidade associada a uma expectativa purista e moralista. E eu não gosto de purismo e moralismo.”*


Aqui Pondé deixa claro o quão pouco sabe sobre veganismo e a produção filosófica sobre a exploração animal em geral. O seu “tem aí um filósofo” e “espécie de guru” sugere que Peter Singer seria o único ou o primeiro filósofo a abordar esse tema. Isso está muito longe de ser verdade! Embora Singer tenha enorme influência nessa área, as reflexões filosóficas sobre a morte de animais para consumo humano é pelo menos tão antigas quanto Plutarco (46 d.C. - 119 d.C.) que escreveu, já na Grécia Antiga, o ensaio De esu carnium (Sobre comer carne). Muitos outros exploraram o tema na história da Filosofia e, hoje, as discussões sobre a moralidade e a exploração animal constituem um ramo consolidado da Ética Aplicada, a Ética Interespécie, com muitos filósofos e filósofas discutindo a temática, alguns dos quais já apresentamos aqui no blog. Pondé ainda diz que Singer teria cunhado o termo especismo, o que também não é verdade. Embora Singer tenha sido o principal responsável pela popularização do termo, quem o cunhou foi o psicólogo Richard D. Ryder. 


As expressões “racismo transespécie” e “forma de canibalismo” são utilizadas por Pondé indevidamente (para não dizer de forma desonesta), numa tentativa de reduzir ao absurdo a posição que está sendo discutida. O que defensores dos direitos animais sustentam é que o especismo é uma forma de opressão e discriminação contra os animais não humanos. Essa discriminação consiste, basicamente, em não darmos a devida consideração aos interesses dos animais não humanos, de modo a permitir, por exemplo, que na indústria de cosméticos os interesses triviais humanos em desenvolver novos produtos se sobreponha aos interesses mais importantes de animais não humanos, como os de não sofrer ou padecer; ou que, nas touradas, o interesse humano no entretenimento se sobreponha aos interesses do animal que sofre e morre na arena. O mesmo ocorre na produção de alimentos de origem animal. Exceto no caso de pessoas que realmente não têm acesso a outros alimentos, o consumo de carne e derivados não tem outras razões além do prazer do paladar, comodidade, tradição; isto é, interesses triviais humanos. Por outro lado, os interesses mais essenciais dos animais são infringidos. Por isso, o especismo é moralmente errado e uma forma de discriminação a ser combatida. Pondé, porém, não responde porque o especismo não seria errado ou não existiria, se limitando a taxar toda a argumentação filosófica de “purista e moralista” para finalizar com um “eu não gosto de purismo e moralismo”. Ou seja, uma atitude patética de criticar sem rebater argumentos, com simples taxações - nada condizente com a atividade filosófica. Perceba: se assim for, podemos taxar qualquer pessoa que defenda os direitos de um determinado grupo e o fim de uma determinada opressão de “purista e moralista” e, a fim de evitar refletir sobre a opressão em questão, tranquilizar a nós mesmos justificando nossas práticas com um “eu não gosto de purismo e moralismo”.

PONDÉ: “A minha crítica ao veganismo é o puritanismo que ele carrega dentro dele. Não é a mera opção alimentar, óbvio que não. É o puritanismo, a ideia de você não fazer parte de nenhum ciclo de violência na natureza. A natureza é um ser extremamente violento e cruel. Agora, criticar o puritanismo vegano não significa ser a favor de tortura animal, mas, ao mesmo tempo, é a própria natureza que come a si mesma. E na medida em que a natureza come a si mesma, por que que a gente que faz parte da natureza e precisa, inclusive, de proteína animal, não pode comer?”*


Neste comentário, Pondé resume alguns pontos já abordados e acrescenta uma informação falsa. Seja por ignorância sobre o tema ou por uma mentira deliberada, Pondé afirma que precisamos de proteína animal. Isso não é verdade. Nós precisamos, sim, de proteína; mas não há nenhuma necessidade de que ela venha de animais. Importantes documentos de organizações de saúde reconhecidas atestam isso. Por exemplo, o Guia alimentar de 2019 organizado pelo Ministério da Saúde do Brasil afirma que “o consumo de carnes ou de outros alimentos de origem animal” não é “imprescindível para uma alimentação saudável”[2]. Outro importante documento da Associação Norte-Americana Dietética diz: “as dietas vegetarianas adequadamente planejadas, incluindo as dietas totalmente vegetarianas ou veganas, são saudáveis, nutricionalmente adequadas e podem proporcionar benefícios para a saúde na prevenção e no tratamento de certas doenças. As dietas vegetarianas bem planejadas são apropriadas para todas as etapas do ciclo vital, incluindo a gravidez, a lactação, a infância e a adolescência, assim como para os atletas”[3]. No caso de atletas, o recente documentário “Dieta de gladiadores” (disponível Netflix) documenta a transição para o vegetarianismo-estrito/veganismo de dezenas de super atletas e recordistas mundiais de diversos esportes, incluindo levantamento de peso. Em suma: exceto no caso de pessoas que realmente não têm acesso a outros alimentos, nós não precisamos de alimentos de origem animal; dizer o contrário é anticientífico.


Agora, se alguns animais comem outros na natureza e nós fazemos parte da natureza, por que não podemos também? Essa objeção já foi abordada aqui no blog e o(a) leitor(a) pode clicar aqui para acessar a resposta completa. Mas dito de forma resumida: (i) ao contrário da maioria dos animais que se alimentam de outros, nós não precisamos disso, conforme exposto acima; (ii) nós somos, até onde sabemos, os únicos seres capazes de refletir moralmente sobre nossas ações, de modo a sermos moralmente responsáveis; (iii) a natureza não é um guia moral e usá-la como tal é recair na falácia naturalista supracitada.
Quanto ao puritanismo, isso já foi respondido na resposta ao primeiro comentário.

PONDÉ: “Porque você se alimenta de animais não significa, a priori, que você seja a favor de tortura animal”*
Por fim, um comentário de Pondé com o qual eu concordo. É verdade: se alimentar de animais não significa gostar ou ser a favor de tortura animal. Hoje, a maioria das pessoas reconhece que os animais não são simples máquinas; eles possuem alguma importância moral que faz com que seu sofrimento deva ser evitado. E isso é exatamente o que levou o cantor Paul McCartney a dizer que “se os abatedouros tivessem paredes de vidro, todos seríamos vegetarianos”. Gostamos disso ou não, a indústria de criação animal gera sofrimento e morte em uma escala gigantesca e difícil sequer de imaginar. Dezenas de bilhões de animais são anualmente mantidos em condições de confinamento, estresse causado pela superpopulação no local, marcações à ferro e debicagens sem anestesia, transportes sem alimentação e água etc, etc. Além, é claro, da morte ao final do processo - ou, no caso de pintinhos machos da indústria de ovos, no início do processo, já que eles são mortos pouco depois de nascerem. E é também por isso que aqueles que reconhecem que causar sofrimento desnecessário é moralmente errado, devem reconsiderar seus hábitos. Uma vez que, como vimos, exceto no caso de pessoas sem acesso a outros alimentos, os produtos da exploração animal não são necessários.

NOTAS:
[1] Entrevista de Pondé concedida a Alysson Augusto. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=T0GYyEYF5vw&list=WL&index=11&t=0s>
[2] Guia alimentar para a população brasileira (2019). Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/guia_alimentar_populacao_brasileira_2ed_atualizada.pdf>
[3] Documento da Associação Norte-Americana Dietética. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/19562864>
Matéria do El País que cita o mesmo documento: <https://brasil.elpais.com/brasil/2016/02/09/estilo/1455014252_014459.html>


*Vídeos em que Pondé expõe seus comentários:


Share:

4 comentários:

  1. Muito bem articuladas as réplicas aos comentários do Pondé. Eu só quero ressaltar a dúvida quanto à tua afirmação de que "até onde sabemos, [somos] os únicos seres capazes de refletir moralmente sobre nossas ações, de modo a sermos moralmente responsáveis". Isso porque há outros animais, como elefantes e certos primatas, que demonstram em seu comportamento traços de moralidade num nível intencional. O Frans de Waal tem uma TEDTalks sobre comportamento moral em animais em que ele fala melhor sobre esses achados. Além disso, há atualmente o questionamento filosófico sobre se devemos considerar certos animais como não meramente pacientes morais, mas como agentes e, portanto, moralmente responsáveis por seus atos.



    "Animal rights philosophers have traditionally accepted the claim that human beings are unique, but rejected the claim that our uniqueness justifies denying animals moral rights. Humans were thought to be unique specifically because we possess moral agency. In this commentary, I explore the claim that some nonhuman animals are also moral agents, and I take note of its counter-intuitive implications."

    Kyle Johannsen em "Are Some Animals Also Moral Agents?" https://www.academia.edu/38387378/Are_Some_Animals_Also_Moral_Agents

    ResponderExcluir
  2. Olá, Alysson. Agradeço o feedback e comentário. Os conhecidos livros Frans de Waal ainda estão na minha pasta de textos a serem lidos (na qual, a propósito, acho que é digno de nota, um texto seu também se encontra, sobre fetichismo no consumo de carne - tema interessantíssimo).

    Bom, os estudos empíricos sobre a natureza dos animais, sobretudo na Etologia, tem nos trazido maravilhosas descobertas e derrubado cada vez mais crenças antigas. Pode ser que a possibilidade de reflexão moral em animais e consequentemente responsabilidade moral venha a ser uma delas, embora seja muito mais fácil falar em sentimentos morais (tal como empatia) e que os animais fossem morais nesse sentido. Confesso não estar a par desse debate dos últimos anos, mas creio que deve concordar que um monte de questões complexas são suscitadas aqui, tal como a de entender que tipo de reflexão moral abstrata poderia haver sem conceitos abstratos. Seja como for, no texto eu resumi a resposta completa que está em outra postagem. Essa resposta completa é um texto do Singer e, portanto, eu reproduzi no resumo a resposta dele.

    Em suma: agradeço por tocar nesse ponto interessante e pelas referências; irei verificá-las. Mas ao que me parece, é uma discussão no máximo em aberto (se tratando da questão sobre responsabilidade moral). Se acabarmos por nos convencer disso, será de fato uma grande mudança de paradigma e, como diz na citação que usou, com "implicações [bastante] contra-intuitivas", pra dizer o mínimo.

    ResponderExcluir
  3. Como fica a argumentação com base em alguém que moralmente não se importa? Eu não vou nem tentar rebater os argumentos, porque até os considero certos, porém, acredito falharem depende do pressuposto inicial que os gera. Somos seres racionais? Sim. Baseamos nosso comportamento na moral e ética? Sim, porém a maioria das pessoas não se importam ou não quer mudar, afinal, esse comportamento já está impregnado na cultura. Em suma, eu não gosto de ver animais sendo torturados, sofrendo, mas também não me importo o suficiente para deixar de consumir carne. Como você mesmo aborda, não necessariamente quem consume carne gosta de ver animais sendo torturados. Eu sinceramente acho louvável quem escolhe não consumir carne, etc. Porém, moralmente não me importo o suficiente para mudar. Talvez um tanto hipócrita? Talvez.
    Quanto a frase polemica do vídeo. Eu também não gosto de pessoas puritanas, mas quando falo isso estou generalizando, refiro-me a maioria, eu sei que há exceções. Em minha experiência e analisando as pessoas ao meu redor, agora ampliando além de veganismo, a maioria das pessoas que eu vi tentando se apresentar as mais puras, que amam todo mundo, na realidade eram tão perversas quanto quem não tentava, se não eram mais, reiterando há exceções.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Caro William,

      Recomendo muitíssimo que você leia o capítulo 12 da obra "Ética prática", de Peter Singer. O capítulo, intitulado "Por que agir moralmente?", é precisamente sobre essa questão. O livro você encontra em pdf na biblioteca virtual aqui do blog.

      Mas o que eu penso dessa questão: vejo a moralidade como algo natural (segundo certos autores como Joshua Greene, surgiu evolutivamente provavelmente porque facilitava a cooperação). Com poucas exceções (como, acredito, psicopatas), todos nós nos importamos com a moralidade em alguma medida. Nos importamos com a lealdade e sinceridade de nossos amigos, defendemos certos princípios como a igualdade humana, fazemos juízos de valor em discussões políticas etc. Então, sim, penso que é incoerente nos importarmos com a moralidade em certas situações (como quando sentimos que estamos sendo injustiçados), mas não em outras (quando exige que façamos algo que não queremos). Em suma, é como exigir algo dos outros que você mesmo não está disposto a fazer.

      Não posso ir além disso. Abraço

      Excluir

Deixe seu comentário

Sobre

Este blog visa contribuir para a divulgação não acadêmica de conteúdos filosóficos relevantes em prol do movimento vegano pelos direitos animais.

Siga-nos no facebook