Um blog sobre as bases filosóficas do veganismo

sábado, 14 de setembro de 2019

Tornando-se vegetariano: um argumento filosófico


Durante boa parte da história da Filosofia, houve filósofos que refletiram sobre a moralidade de nossas relações com os animais não-humanos e criticaram muitas de nossas práticas comuns. Por exemplo, já na Grécia Antiga, o influente filósofo Plutarco escreveu o ensaio De esu carnium (Sobre comer carne); na Roma Antiga, o filósofo Porfírio publicou sua obra De abstinentia ab esum animalum (Da abstinência de comer animais). Ambos os filósofos defenderam com veemência que devemos levar em consideração o sofrimento e a vida dos animais não-humanos e que matá-los para propósitos fúteis é moralmente inaceitável. Na filosofia contemporânea, o debate acerca das questões morais envolvidas nos usos de animais não-humanos cresceu desde a década de 70 e hoje já pode ser considerado uma subárea consolidada da Filosofia Moral: a Ética Interespécie. Assim, muitos filósofos argumentaram - e seguem argumentando - que práticas socialmente aceitas, tal como o consumo de alimentos de origem animal, são moralmente erradas e devem ser abolidas. O texto que se segue é uma reconstrução simplificada de um dos argumentos desenvolvidos pelo filósofo Alastair Norcross contra o consumo de alimentos de origem animal. Para pensar o assunto, o filósofo inicia com um experimento mental (uma história imaginária que podemos utilizar para discutir posições, teses, teorias etc).


Imagine que, em um determinado bairro, os vizinhos ouçam barulhos estranhos advindos do porão de uma casa e decidam ligar para a polícia. Quando a polícia chega ao local, descobre que a casa é de Fred. Ao entrarem no porão, encontram 26 jaulas pequenas; cada uma delas contendo um filhote de cachorro. Muitos desses filhotes estão mutilados e há urina e fezes pelo chão. Quando questionado, Fred admite prontamente: ele mantém esses filhotes vivos por 26 semanas, quando então os mata. Durante esse período, realiza uma série de mutilações tais como cortar-lhes os narizes e as patas com uma faca quente sem qualquer anestesia. Fred é imediatamente preso por abuso animal. Quando a história torna-se pública, uma onda de revolta social ocorre: matérias jornalísticas e clamores populares exigem punições mais duras para este tipo de crime. 
Quando chega seu julgamento, porém, Fred explica seu comportamento e argumenta que não merece qualquer tipo de punição. O que ocorre é que ele é um grande amante de chocolate que, há alguns anos, sofreu um acidente de carro. Quando saiu do hospital e foi comer seu prato preferido, mousse de chocolate, Fred percebeu que não sentia mais o prazer de antes. Ele então correu para o mercado e comprou uma barra de chocolate de sua marca favorita. Mais uma vez, o prazer de comê-lo não se equiparava ao de antes. Após investigação, descobriu-se que o acidente de carro havia danificado irremediavelmente sua glândula godiva, responsável pela produção do hormônio que causa a experiência prazerosa do chocolate. Fred mantinha as mesmas experiências com todos os demais alimentos, mas não com o chocolate.
Procurando por uma solução para seu problema, Fred descobriu que até recentemente a glândula godiva humana era a única fonte conhecida do hormônio em questão, mas que uma recente pesquisa havia mudado essa situação. Um cirurgião veterinário, ao realizar uma autópsia em um filhote severamente abusado, encontrou concentrações do hormônio responsável pela experiência do chocolate em seu cérebro. Descobriu-se, então, que apesar dos filhotes não produzirem normalmente esse hormônio, eles poderiam os produzir através da exposição constante a estresse e sofrimento durante o período mínimo de seis meses. Quando ficou sabendo disso, alega Fred, ele fez o que um grande amante de chocolate faria: criou em seu porão um laboratório para produzir e extrair o hormônio dos filhotes. Cada filhote, quando morto, continha hormônio suficiente para o prazer degustativo durante uma semana - e por isso os 26 filhotes. Assim, Fred argumenta que não é um sádico, ele não possui nenhum prazer com o sofrimento em si desses filhotes e diz que se houvesse outra forma de adquirir o prazer do chocolate, ficaria feliz em usá-la. Fred até mesmo simpatiza com aqueles que ficam horrorizados com o sofrimento desses filhotes, mas alega que o que está em jogo é a satisfação humana e que sua vida seria empobrecida sem o prazer do chocolate; entre os interesses humanos e os interesses de meros animais não-humanos, os interesses humanos devem se sobrepor. 
Quantos de nós aceitariam a justificativa de Fred? Eu certamente não e aposto que você, leitor, também não. Estamos convencidos de que o comportamento de Fred é inaceitável. Consideramos um infortúnio para ele que não possa ter um de seus prazeres degustativos, mas que isso não torna moralmente aceitável a tortura, mutilação e morte de 26 filhotes a cada seis meses. O sofrimento e a morte desses animais não pode ser superado pelo interesse degustativo de Fred. Essa é uma posição com a qual todos aqueles que aceitam que o sofrimento de animais não-humanos possui alguma importância podem concordar.

A história de Fred é claramente fictícia, mas aqui chegamos ao ponto central da história: anualmente, bilhões de animais sofrem e são mortos exatamente para o mesmo propósito, isto é, o prazer degustativo. Ao menos para a grande maioria de nós, o abandono da carne e outros alimentos de origem animal não causaria nenhum risco à saúde. Hoje, já é amplamente aceito pela comunidade científica que a dieta estritamente vegetariana pode ser perfeitamente saudável. Desse modo, para todos aqueles de nós que possuem a opção de outro tipo de alimentação, os alimentos de origem animal possuem por finalidade apenas o prazer degustativo. Levando em consideração que práticas que causam sofrimento são comuns na indústria de criação animal (tais como confinamento, estresse causado pela superpopulação no local, marcações à ferro e debicagens sem anestesia, transportes sem alimentação e água etc.), o que então poderia diferenciar nossa prática da de Fred? 
À essa altura, podemos apresentar a formalização do argumento feita por Norcross:

(1) Se é errado torturar filhotes por prazer degustativo, é errado apoiar a indústria de criação animal.
(2) É errado torturar filhotes por prazer degustativo.
(3) Portanto, é errado apoiar a indústria de criação animal.

A menos que uma diferença moralmente relevante entre os dois casos seja apresentada, a conclusão é a de que condenar Fred em seu caso hipotético mas continuar consumindo alimentos de origem animal por prazer degustativo é uma posição moralmente inconsistente, isto é, uma posição em que juízos contraditórios são aceitos. A ampla maioria das pessoas condenaria Fred com veemência e, no entanto, a maioria das pessoas ainda consome produtos de origem animal, revelando como essa inconsistência moral é vastamente presente em nossa sociedade. É preciso reverter esse quadro.

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SAIBA MAIS
O texto acima é uma versão simplificada da argumentação desenvolvida pelo filósofo Alastair Norcross em seu artigo científico intitulado “Puppies, Pigs, and People: Eating meat and marginal cases” (2004). Disponível em: <https://onlinelibrary.wiley.com/…/…/j.1520-8583.2004.00027.x>. 




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Este blog visa contribuir para a divulgação não acadêmica de conteúdos filosóficos relevantes em prol do movimento vegano pelos direitos animais.

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