Um blog sobre as bases filosóficas do veganismo

sábado, 28 de setembro de 2019

Não deveríamos resolver os problemas humanos primeiro? Respondendo objeções #2

Seguindo nossa série de postagens respondendo objeções comuns ao movimento vegano pelos direitos animais, tratamos hoje daquela segundo a qual os seres humanos vêm em primeiro lugar e que, assim, precisaríamos primeiro lidar com os problemas humanos antes de pensar nos problemas que envolvem os animais não humanos. Guerras, epidemias, sexismo, racismo, pobreza, fome, desigualdade social… diante desses e muitos outros graves problemas que afligem muitos seres humanos, será que não deveríamos primeiro resolvê-los todos para só depois pensar no sofrimento animal? O texto do filósofo Peter Singer, compartilhado abaixo, responde a essa objeção.

Por Peter Singer

Entre os fatores que dificultam o despertar da preocupação do público com relação aos animais, talvez o pior seja a afirmação de que “seres humanos vêm em primeiro lugar” - o que implica assumir que é impossível comparar qualquer problema relativo aos animais, como questão moral ou política séria, a um problema relativo aos seres humanos. Esse pensamento é, em si, uma indicação de especismo. Como pode alguém que não tenha feito um estudo profundo sobre o sofrimento animal saber que essa questão envolve problemas menos sérios do que os associados ao sofrimento humano? Pode-se alegar que os animais não importam e que, por mais que sofram, seu padecimento é menos importante do que o dos seres humanos. Mas dor é dor, e a importância de impedi-la não diminui porque ela não se refere a um membro de nossa espécie. O que pensaríamos de alguém que dissesse “brancos vêm primeiro” e que, portanto, a pobreza da África não é tão grave quanto a da Europa?

É verdade que muitos problemas no mundo merecem nosso tempo e energia. A fome e a miséria, o racismo, as guerras e a ameaça de aniquilação nuclear, o sexismo, o desemprego, a preservação de nosso frágil meio ambiente - todas essas são questões graves e é difícil dizer qual é a mais importante. No entanto, quando nos libertamos do especismo, percebemos que a opressão de não humanos por humanos acontece pari passu [no mesmo passo] a esses problemas. O sofrimento que infligimos é grande e os números envolvidos são gigantescos: mais de 100 milhões de porcos, bovinos e ovelhas passam, todos os anos, pelos processos descritos no capítulo 3, somente nos Estados Unidos; o mesmo acontece com bilhões de galinhas; e ao menos 25 milhões de animais são submetidos a experimentação anualmente. Se mil seres humanos fossem forçados a passar pelos testes que levam os não humanos ao padecimento, para averiguar, por exemplo, a toxicidade de produtos de limpeza doméstica, haveria um clamor nacional. O uso de milhões de animais para esse fim deveria, no mínimo, causar reação semelhante, sobretudo porque esse sofrimento é desnecessário e poderia ser evitado se assim o quiséssemos. A maioria das pessoas sensatas deseja o fim das guerras, da desigualdade racial, da pobreza e do desemprego; o problema é que estamos tentando impedir essas coisas há anos e agora temos de admitir que, em grande medida, não sabemos como fazê-lo. A redução do sofrimento dos animais seria relativamente fácil, desde que os seres humanos se decidissem a isso.

A ideia de que “seres humanos vêm em primeiro lugar” é usada mais como um pretexto para não fazer nada em relação a animais humanos e não humanos do que como uma genuína opção entre alternativas incompatíveis. A verdade é que não há incompatibilidade alguma nesse caso. É certo que todos temos um limite de tempo e energia, e o período que dedicamos ao trabalho ativo por uma causa reduz o tempo disponível para outra. Mas nada impede aqueles que devotam seu tempo e energia a problemas humanos de aderir ao boicote a produtos ligados à crueldade do agronegócio. Ser vegetariano não toma mais tempo do que comer carne. Como vimos no capítulo 4, os que alegam preocupação com o bem-estar dos seres humanos e com a preservação do meio ambiente deveriam tornar-se vegetarianos simplesmente por esse motivo. Estariam, assim, aumentando a quantidade de grãos disponíveis para alimentar pessoas em todas as partes, reduzindo a poluição, economizando água, energia e deixando de contribuir para a derrubada das florestas. Além disso, como uma dieta vegetariana é menos dispendiosa do que a baseada em pratos preparados com carne, teriam mais dinheiro para gastar com o alívio da fome, o controle populacional ou qualquer outra causa social ou política que acreditassem urgente. Não questiono a sinceridade dos vegetarianos que têm pouco interesse pelo movimento pela libertação animal porque dão prioridade a outras causas. Mas, quando não vegetarianos afirmam que os “problemas humanos vêm em primeiro lugar”, não posso deixar de me perguntar o que é, exatamente, que estão fazendo pelos seres humanos que os compele a continuar apoiando a exploração perdulária e cruel dos animais de criação.

SAIBA MAIS
O texto acima é um trecho do capítulo 6 da obra Libertação animal, de autoria do filósofo Peter Singer. Ao leitor ou leitora interessada, essa importante obra está disponível em nossa biblioteca virtual e pode ser acessada clicando aqui.

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Este blog visa contribuir para a divulgação não acadêmica de conteúdos filosóficos relevantes em prol do movimento vegano pelos direitos animais.

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